sexta-feira, 15 de julho de 2016

Sociedade e desigualdade

Deus criou o planeta. E um dia criou o homem sem distinção porque os ama a todos de igual forma. Deu-lhes um planeta para que todos usufruam igualmente dele. Logo o mundo é de todos e não só de alguns. Assim tudo o que está no mundo é de todos e não só de alguns. Alguns homens, não satisfeitos com o que tinham, viram uma forma de se distinguirem dos demais: criaram a propriedade privada. Ao fazê-lo, privaram os demais da terra que, desde o começo, nunca lhes pertenceu. É de todos, mas eles não querem saber. Nasceu o egoísmo acompanhado de uma ganância desmesurada. Estes foram criando desigualdades cada vez maiores. Alguns tornaram-se reis de uma terra que não lhes pertence. É de todos. E os outros, por diversas razões, aceitaram a imposição. Como essas famílias eram numerosas, tinham de criar a mesma diferença para a descendência. Nasceu a divisão de classes. Outros, à falta de outro exemplo, seguiram-lhes o exemplo. Criaram a riqueza que não tinham à custa do trabalho quase escravo. Aprenderam, com os demais, e criaram ainda mais diferença. Num mundo de tanta injustiça social, onde os que têm tudo de vez em quando se lembram de lançar alguma caridade sobre os que têm pouco ou nada, achando isso normal, para mascarar a divisão social por eles criada, desta sociedade pouco ou nada temos a esperar a não ser mais do mesmo. Porquê? Porque quem está a ganhar com esta situação não quer mudar. Não quer perder a distinção criada por eles. Aferram-se à tradição e jogam todos os dados para que tal não aconteça. Numa sociedade tão injusta podemos esperar justiça? A justiça parece funcionar a favor de que mais tem senão vejamos o que te vindo a acontecer. Na sociedade onde a diferença é grande, e ameaça ser cada vez maior, a justiça parece ser igual no custo para todos os cidadãos. O que deriva daqui? Só podem recorrer à justiça quem tem dinheiro para tal ou quem pode pedir ajuda mostrando os escassos recursos que têm. Os outros, a classe média, ou consegue fazer o esforço ou a justiça sai-lhe mais cara que o desejo de obtê-la. Depois, se estivermos atentos às notícias, vemos claramente que nem sempre a justiça é imparcial já que sempre existem os chamados “tráficos de influência” (caso Noos em Espanha, por exemplo, onde alguns meios de comunicação falam de pressões exercidas sobre a fiscalía da parte da casa real e do próprio governo, para evitar a condenação da infanta Cristina) que fazem a mesma pender para um lado dos pratos da balança. E sabemos o que a pressão pode fazer a um indivíduo… que muitas vezes se podem traduzir em ameaças veladas ou frontais que também se podem traduzir em subornos. E a moral nestas ocasiões muitas vezes não é suficientemente forte. Há muito a perder… às vezes até a própria imagem. Ora, se a justiça não funciona, a democracia também não. Chamem o que quiserem a esse sistema político, mas não o mascarem de “democracia”. E quando os próprios governos exercem pressão sobre um órgão que deve ser por natureza independente e imparcial, chegamos mais longe na injustiça do que alguma vez sonhámos. Estamos perante uma espécie de ditadura que pode ser monárquica, republicana, capitalista… Quando vemos os meios de comunicação a ser comprados por interesses privados, poderemos esperar uma informação isenta? Quando os estados dominam os mesmos meios de informação, podemos esperar uma informação isenta? E poderíamos continuar… Quando vemos membros de famílias reais a escolherem um país monárquico despótico e medieval sob o pretexto de que é um país seguro para se viver… quando membros da igreja defendem ideias fascistas e injustas criando mais diferença anda… quando num país se criam limitações à liberdade de expressão na internet, regulando que não se pode falar mal da família real para que a sua imagem jamais seja sujeita a possíveis manchas… não sei o que nos espera, mas tudo parece indicar que, ou estamos atentos, lemos os sinais e os interpretamos correctamente e a tempo, ou sofreremos um retrocesso histórico que muitos não desejam…

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

www.centaurosaher.blogspot.com



Um grande poeta, músico e vocalista. Vale a pena seguir...



Ler Centauro Saher é abandonar o mundo onde vivemos para entrar num mundo harmonioso cheio de amor e sensibilidade.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

D. Francelina


Morava no mesmo bairro, na segunda casa depois da curva. Franzina, simpática e discreta, passava grande parte do seu tempo em casa. O seu cabelo castanho-escuro ondulado cortado no pescoço, preso por cima das orelhas com ganchos camuflados, o seu rosto fino de olhos faiscantes e lábios finos emanavam serenidade e alegria. Não tinha filhos. Vivia só com o marido na companhia de uma família de gatos.
Era esta cara alegre que eu via, em raras ocasiões, quando regressava da escola. Após pôr o almoço do marido na mesa, deslizava até ao gradeamento do muro do seu quintal e o seu olhar vagueava para além da paisagem imediata e perdia-se no ponto onde o físico se perde para o secreto local do pensamento. Era assim que a surpreendia. Umas vezes visivelmente preocupada, outras, perdida no labirinto das possibilidades da vida e outras ainda só para apanhar o ar ausente de pessoas. Não sei se a perturbava com a minha chegada e o meu cumprimento. Nunca soube. Nunca mo deu a entender. O seu olhar rodava alegremente na minha direção sempre que os meus passos me denunciavam. Regressava do seu mundo longínquo, onde estivera aprisionada por instantes, e respondia na sua voz simpática interessando-se por mim. Respondia à sua alegria contagiante na certeza de estar na presença de uma pessoa da qual não tinha nada a temer. Era, talvez, uma das poucas pessoas. Na sua presença sentia-me protegida, na certeza de estar debaixo de uma grossa asa protetora. Sempre acreditou em mim. Mesmo quando a coscuvilhice parecia ter aberto uma ferida na sua consideração. Interrogava-me então para me ouvir e aconselhar numa voz baixa preenchida de cumplicidade. Nunca me disse quem iniciara o boato. Limitava-se simplesmente a questionar-me de uma forma que a culpabilidade ficava excluída da conversa. Também nunca me interessara. Mas o que mais me agradava era conhecer a vida secreta dos seus gatos que eu avistava ocasionalmente em cima dos muros ou atravessando rapidamente a estrada de terra batida, sem incomodarem ninguém. Sendo uma grande alma, jamais matava um animal por ser excedentário. Criava-os dedicando-lhes todo o amor traduzido em carinho. Todos tinham nome. Fui apresentada às mães e acariciei os pequeninos sob o olhar atento das progenitoras. Era um mundo escondido dos olhares vizinhos e que se abria para mim. Era uma honra. Nessa época, não era grande amante de gatos. Nunca tivera grande contacto com esses misteriosos felinos. Fiz a minha estreia nos anexos da sua casa. Sentia-me intimidada. Era um mundo desconhecido para mim e não sabia como seria recebida. Cedo, os meus receios se provaram infundados. Toda a família me aceitou no seu espaço. A presença da dona parecia dar-lhes confiança. Nos dias seguintes, voltei para acompanhar o seu crescimento. Introduzia o braço na abertura do gradeamento e abria o portão largo correndo para as traseiras da vivenda. Batia à porta e pedia autorização para ver os animais. Os gatos lentamente transformaram a intrusa que era na criança maçadora que me tornara. A paciência era gerida pela tolerância.
Foi numa manhã primaveril que conheci uma outra família felina especial. Era uma gata especial que tivera uma pequena ninhada. Desde pequena, aquela afeiçoara-se de maneira diferente à dona e ocupara um lugar especial no seu coração. Poder-se-ia dizer que se tornara na filha que D. Francelina não tivera. Era a única aceite em casa, de forma permanente, pelo menos. Distinguia-se realmente dos outros. Havia nela algo indefinível que a tornava quase humana.
Ao final da tarde, depois de um dia de trabalho, entrava o marido metido num fato de macaco azul. Franzino como ela, evidenciava um colar de cabelo que caía das orelhas para a nuca. O nariz fino do rosto oval e os olhos castanhos inteligentes, também emanavam cordialidade e alegria. Um casal que me alegro de ter conhecido. Pessoas que trouxeram um toque especial à minha vida infantil.

Morreram, há bastantes anos atrás. Primeiro foi ele, depois ela, levada pelo desgosto inultrapassável da sua perda. Um casal especial que conseguiu ultrapassar a ausência de descendência numa época em que a esterilidade (habitualmente atribuída à mulher) era difícil de aceitar.

domingo, 28 de novembro de 2010

A porta aberta

Era uma amizade de quase quatro décadas. A imponente elevação, deitada no sentido da costa da província vizinha, ela protegia a imensa planura dos fortes e húmidos ventos marítimos. Não se conhecia bem a sua história. Ela também não sabia contá-la bem, perdida já nas suas imensas e enevoadas memórias. Ainda assim, ela guardava-as para entreter a sua jovem amiga, nas tardes calmas, longas e quentes de verão, temperadas de estridentes cânticos de cigarras. A sua jovem amiga, guardiã do rés-do-chão direito do alto e elegante prédio que enfrentava orgulhosamente os dias e as noites nas suas roupas gastas e rotas, apresentava um ar miserável de doce menina pobre. A única riqueza era a vista que se alongava até à enorme e fiel Serra d’Aire, afundada no seu quieto sono eterno, e cuja crosta se coloria de um suave tom azulado nas tardes em que as condições atmosféricas lhe eram favoráveis, substituindo a sua habitual e já gasta capa cinzenta. Era para ela que se voltava a porta traseira daquele andar. Toda ela feita de madeira, pintada de branco, aberta ao meio em duas altas e estreitas vidraças, separadas por uma faixa de madeira onde encaixavam, cegas por um cortinado fino que filtrava a luz e os olhares indiscretos, e tapadas por uma porta articulada da mesma madeira, que se prendia na argola cravada na madeira, uns bons centímetros cima do puxador da porta, que rodava à entrada ou à saída. Essas vidraças eram os olhos da estreita e comprida cozinha. Talvez por sentir a fragilidade desse obstáculo às intenções obscuras de qualquer semelhante, a porta mantinha-se teimosamente aberta, com a escura, cinzenta e grossa chave, cuja ponta terminava numa argola, em forma de asa de borboleta, já ameaçada pela ferrugem, sempre pendurada do lado interior. Dias e noites, porta e serra viveram numa entranhável cumplicidade e sã convivência, que se manteria por muitos anos. A serra velava majestosamente pela fragilidade da amiga, mantendo-se atenta a todos os passos e movimentos realizados nas suas imediações, tentando descortinar as intenções por trás de cada indicador dobrado que batia na vidraça; a porta velava pelo seu bem-estar, animando-a nas intempéries e nas valas que os homens cavam no seu peito, em nome dos blocos retirados que lhes auferem o tão precioso dinheiro, (ainda que ameaçando aplaná-la com ambição desmesurada), desfigurando-lhe o rosto com golpes implacáveis. Era desses estranhos seres, movimentados por duas pernas, e por valores estranhos, que elas se procuravam defender… A frágil porta nunca se abriu a estranhas mãos, encontrando na enorme dor da sua gigante amiga, a única dor da sua existência.