segunda-feira, 5 de agosto de 2013

D. Francelina


Morava no mesmo bairro, na segunda casa depois da curva. Franzina, simpática e discreta, passava grande parte do seu tempo em casa. O seu cabelo castanho-escuro ondulado cortado no pescoço, preso por cima das orelhas com ganchos camuflados, o seu rosto fino de olhos faiscantes e lábios finos emanavam serenidade e alegria. Não tinha filhos. Vivia só com o marido na companhia de uma família de gatos.
Era esta cara alegre que eu via, em raras ocasiões, quando regressava da escola. Após pôr o almoço do marido na mesa, deslizava até ao gradeamento do muro do seu quintal e o seu olhar vagueava para além da paisagem imediata e perdia-se no ponto onde o físico se perde para o secreto local do pensamento. Era assim que a surpreendia. Umas vezes visivelmente preocupada, outras, perdida no labirinto das possibilidades da vida e outras ainda só para apanhar o ar ausente de pessoas. Não sei se a perturbava com a minha chegada e o meu cumprimento. Nunca soube. Nunca mo deu a entender. O seu olhar rodava alegremente na minha direção sempre que os meus passos me denunciavam. Regressava do seu mundo longínquo, onde estivera aprisionada por instantes, e respondia na sua voz simpática interessando-se por mim. Respondia à sua alegria contagiante na certeza de estar na presença de uma pessoa da qual não tinha nada a temer. Era, talvez, uma das poucas pessoas. Na sua presença sentia-me protegida, na certeza de estar debaixo de uma grossa asa protetora. Sempre acreditou em mim. Mesmo quando a coscuvilhice parecia ter aberto uma ferida na sua consideração. Interrogava-me então para me ouvir e aconselhar numa voz baixa preenchida de cumplicidade. Nunca me disse quem iniciara o boato. Limitava-se simplesmente a questionar-me de uma forma que a culpabilidade ficava excluída da conversa. Também nunca me interessara. Mas o que mais me agradava era conhecer a vida secreta dos seus gatos que eu avistava ocasionalmente em cima dos muros ou atravessando rapidamente a estrada de terra batida, sem incomodarem ninguém. Sendo uma grande alma, jamais matava um animal por ser excedentário. Criava-os dedicando-lhes todo o amor traduzido em carinho. Todos tinham nome. Fui apresentada às mães e acariciei os pequeninos sob o olhar atento das progenitoras. Era um mundo escondido dos olhares vizinhos e que se abria para mim. Era uma honra. Nessa época, não era grande amante de gatos. Nunca tivera grande contacto com esses misteriosos felinos. Fiz a minha estreia nos anexos da sua casa. Sentia-me intimidada. Era um mundo desconhecido para mim e não sabia como seria recebida. Cedo, os meus receios se provaram infundados. Toda a família me aceitou no seu espaço. A presença da dona parecia dar-lhes confiança. Nos dias seguintes, voltei para acompanhar o seu crescimento. Introduzia o braço na abertura do gradeamento e abria o portão largo correndo para as traseiras da vivenda. Batia à porta e pedia autorização para ver os animais. Os gatos lentamente transformaram a intrusa que era na criança maçadora que me tornara. A paciência era gerida pela tolerância.
Foi numa manhã primaveril que conheci uma outra família felina especial. Era uma gata especial que tivera uma pequena ninhada. Desde pequena, aquela afeiçoara-se de maneira diferente à dona e ocupara um lugar especial no seu coração. Poder-se-ia dizer que se tornara na filha que D. Francelina não tivera. Era a única aceite em casa, de forma permanente, pelo menos. Distinguia-se realmente dos outros. Havia nela algo indefinível que a tornava quase humana.
Ao final da tarde, depois de um dia de trabalho, entrava o marido metido num fato de macaco azul. Franzino como ela, evidenciava um colar de cabelo que caía das orelhas para a nuca. O nariz fino do rosto oval e os olhos castanhos inteligentes, também emanavam cordialidade e alegria. Um casal que me alegro de ter conhecido. Pessoas que trouxeram um toque especial à minha vida infantil.

Morreram, há bastantes anos atrás. Primeiro foi ele, depois ela, levada pelo desgosto inultrapassável da sua perda. Um casal especial que conseguiu ultrapassar a ausência de descendência numa época em que a esterilidade (habitualmente atribuída à mulher) era difícil de aceitar.